«Muitos rapazes sonham ser invisíveis. Eu era de certo modo invisível. Jamais fui surpreendido enquanto roubava dinheiro do bolso do meu pai nem enquanto dormia num ou noutro dos meus esconderijos. Também parecia invisível no meio dos irmãos, talvez porque, ao estar no meio, os mais velhos me consideravam pequeno e os mais novos, velho. A fronteira, a terra-de-ninguém, a não pertença, o território da escrita. Só a minha mãe me via e olhava para mim com uma expressão preocupada de que eu gostava. E que me magoava. Talvez gostasse porque me magoava. Talvez ela soubesse. Um dia, ao almoço, referiu-se a uma pessoa que afirmou ser cleptomaníaca. Quando um dos meus irmãos lhe perguntou o significado daquela estranha palavra, respondeu dirigindo-se a mim, que fiquei sem pingo de sangue na cara durante uns segundos, até que, talvez por piedade, desviou o olhar. A minha mãe tinha capacidades de adivinhação.Mais adiante, animado pela impunidade dos meus furtos, e já numa carreira desenfreada para a delinquência, levei a cabo uma incursão na carteira do meu pai, da qual retirei uma nota de cinco pesetas (uma fortuna). Com essa nota, transformada em moedas, poderia ver a rua da cave do Vitaminas durante o resto da minha vida (durante o resto da vida dele, para falar com exactidão). Tinha as pernas a tremer quando saí com a nota para a realidade, a arfar como um asmático. Realizei o furto à hora da sesta e tive a nota no meu bolso até às sete da tarde. A essa hora compreendi que nem a minha consciência suportaria o peso de um delito daquela natureza nem a polícia seria tão desajeitada que não desse com o ladrão quando o meu pai denunciasse o desaparecimento.»
[in O Mundo, de Juan José Millás, trad. de Luísa Diogo e Carlos Torres, Planeta, 2009]
[in O Mundo, de Juan José Millás, trad. de Luísa Diogo e Carlos Torres, Planeta, 2009]
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